Respire Fundo (A Mouthful of Air), dirigido por Amy Koppelman e lançado em 2021, é um filme que aborda com sensibilidade e profundidade os desafios da saúde mental, especificamente a depressão pós-parto. O filme narra a história de Julie Davis, uma escritora de livros infantis que, apesar de sua vida aparentemente perfeita, enfrenta uma luta interna devastadora contra a depressão. A partir de uma perspectiva psicanalítica, o filme oferece uma rica oportunidade para explorar temas como a repressão, o inconsciente e a luta entre o desejo de viver e as pulsões destrutivas que podem emergir em situações de sofrimento psíquico extremo.
Julie é uma personagem cuja vida interior está marcada por uma profunda dissociação entre sua identidade pública e suas emoções privadas. Essa dissociação é característica de um ego fraturado, uma noção central na teoria psicanalítica freudiana. Freud descreveu o ego como uma estrutura que mediatiza entre as exigências do id, do superego e da realidade externa. No caso de Julie, seu ego está em constante batalha para manter uma fachada de normalidade, enquanto seu id é sobrecarregado por sentimentos reprimidos de tristeza, inadequação e medo. Embora o filme não mostre isso de forma explícita, percebe-se, de forma sutil, que algo terrível ocorreu na infância de Julie, precisamente na relação com o pai, quando, aos sete anos, ela começou a sentir-se confusa e reprimida. A mãe, que ainda está presente, parece acobertar o malfeito do marido, pai de Julie.
Simbolicamente, quando Julie passa a viver em um mundo de fantasia, carregado de histórias onde todas as estrelas caíram do céu, deixando seu mundo escuro, esse momento pode representar o colapso de seu próprio mundo interno, que ficou sem luz. Julie ainda vivia uma criança ferida, cujas cicatrizes do passado nunca foram curadas. Essa repressão, ao se tornar mãe, trouxe à tona sua angústia. Apesar de todo o amor que sentia por ser mãe, não se sentia capaz de curar suas dores profundas e, assim, de cuidar de seus filhos. Como uma jovem mãe, que vive uma criança interna machucada e ferida, poderia cuidar de outras crianças? Cabe a reflexão: será que esse foi o principal gatilho para o surgimento da depressão e da ansiedade, gerando todo o caos em sua vida?
Julie apresentava características de depressão, baixa autoestima e uma forte sensação de inferioridade em relação a si mesma. Ela sofria uma crise de identidade, possivelmente devido à quebra de segurança ocorrida na infância, durante a fase de formação de caráter, que se desenvolve até os sete anos. Sentia-se, portanto, insegura, características essas de alguém que carrega uma dor muito profunda resultante dos traumas e do abandono vividos na infância. O filme fala sobre a depressão, mas, como psicanalista, surge a questão: o que a levou, de fato, a chegar a esse ponto final?
O filme retrata de forma palpável a repressão dessas emoções, um mecanismo de defesa descrito por Freud como o processo pelo qual pensamentos, desejos e sentimentos inaceitáveis são empurrados para o inconsciente. Julie, uma mulher que cria mundos de fantasia em seus livros infantis, está, de muitas maneiras, tentando reprimir sua própria dor e sofrimento. Sua habilidade de criar histórias encantadoras para crianças contrasta com a incapacidade de narrar sua própria história, de enfrentar a escuridão que a persegue.
A depressão pós-parto de Julie pode ser entendida pela lente da perda de objetos, um conceito central na teoria das relações objetais. Melanie Klein, uma das principais figuras nesse campo, destacou como as primeiras relações com figuras de apego, particularmente a mãe, influenciam a formação do psiquismo. Agora mãe, Julie experimenta uma regressão emocional, na qual seus próprios traumas de infância e inseguranças vêm à tona. Ela enfrenta o “luto” por sua identidade anterior, antes de se tornar mãe, e a ansiedade associada a essa nova responsabilidade pode estar ligada a ansiedades inconscientes sobre sua própria capacidade de cuidar e proteger que, em dado momento não foi possível faze-lo, refiro-me a sua infância.
O filme também explora a tensão entre Eros (a pulsão de vida) e Thanatos (a pulsão de morte), conceitos fundamentais na obra de Freud. Julie oscila constantemente entre esses dois impulsos. Por um lado, ela quer ser uma mãe amorosa e presente, imbuída de Eros, mas, por outro, é atraída pela pulsão de morte, que se manifesta em seus pensamentos suicidas e na sensação de que sua família estaria melhor sem ela. Essa luta interna é um dos aspectos mais comoventes do filme, pois revela como as forças destrutivas podem se enraizar profundamente na psique, levando à autossabotagem e ao desejo de autoaniquilação.
A culpa é outro tema central em Respire Fundo. Julie se sente culpada por não ser capaz de corresponder às expectativas de si mesma e dos outros. Na visão freudiana, o superego é a parte da mente que internaliza as normas e padrões da sociedade, muitas vezes de maneira punitiva. O superego de Julie parece ser extremamente crítico, exacerbando sua depressão e intensificando sua sensação de inadequação. Sua luta é, em parte, contra essa voz interna que a julga impiedosamente.
A maternidade, como retratada no filme, também pode ser analisada à luz da teoria do narcisismo. Julie parece estar em busca de uma validação externa que nunca chega, o que a leva a um ciclo de autocrítica e desespero. Essa busca por validação pode ser vista como uma tentativa de reconstruir um ego que se sente fragmentado e insuficiente, especialmente em um papel tão exigente quanto o de mãe.
Em última análise, Respire Fundo é um filme que nos convida a refletir sobre os aspectos mais sombrios da experiência humana, aqueles que muitas vezes são silenciados ou ignorados. Através de uma lente psicanalítica, podemos ver como a repressão, os conflitos internos entre Eros e Thanatos, e a influência de um superego punitivo podem se combinar para criar uma tempestade perfeita na psique de uma pessoa. A história de Julie é um poderoso lembrete da necessidade de abordar a saúde mental com empatia, compreensão e uma disposição para enfrentar as partes mais dolorosas de nossa própria natureza.
“E para finalizar, Julie queria matar a dor que existia dentro dela. Era como se, ao não conseguir se defender quando criança, agora ela pudesse escolher, e ao faze-lo tentando se defender acaba com sua própria vida, quando já adulta não deu conta de elaborar sua dor do passado, Algo que não conseguiu fazer ao estabelecer um limite quando passou pelo que seu pai havia “supostamente” havia feito feito, e pelo qual mais tarde ele se desculpou, deixando-a congelada assim como deveria ter ficado lá atras e duramte toda a vida. Acabar com sua própria vida seria, para Julie, uma forma de eliminar aquilo que mais a havia ferido—um pai que, de outra forma, permaneceria eternamente dentro de si.”
Análise do filme Respire Fundo por Fabiana Villela